A NEUROCIÊNCIA DO SONO
O sono é um processo biológico vital, desempenhando funções cruciais para a homeostase cerebral e o funcionamento adequado de diversos sistemas fisiológicos. A neurociência do sono busca entender os mecanismos cerebrais e biológicos que controlam esse estado, bem como suas funções restauradoras e os impactos de sua privação na saúde humana. Estudos revelam que o sono é composto por dois estágios principais: o sono não REM (NREM) e o sono REM (Rapid Eye Movement), que se alternam ciclicamente ao longo da noite, desempenhando papéis essenciais na consolidação da memória, regulação emocional, regeneração celular e manutenção do equilíbrio metabólico (Martin, 2018; Luo, 2015).
O sono NREM é subdividido em três estágios, sendo o estágio N3, também chamado de sono de ondas lentas, fundamental para a recuperação física e mental, além de participar da consolidação da memória declarativa (Luo, 2015; Machado, 2019). O sono REM, por sua vez, é caracterizado pela intensa atividade cortical e pela ocorrência de sonhos vívidos, sendo essencial para o processamento emocional e a consolidação de memórias procedimentais e emocionais (Silverthorn, 2017; Gardner & Shoback, 2017).
A transição entre esses estágios é regulada por um complexo equilíbrio de neurotransmissores e sistemas neurais, cujas disfunções podem levar a distúrbios do sono, como a insônia, apneia obstrutiva do sono e narcolepsia (Dietz, 2018; Gardner & Shoback, 2017). Este artigo examina os mecanismos neurobiológicos que regulam o sono, explorando tanto as teorias homeostáticas quanto circadianas, além de discutir as funções restauradoras de cada fase do sono e os principais distúrbios relacionados ao ciclo sono-vigília (Silverthorn, 2017; Machado, 2019).
O SONO NÃO REM (NREM)
O Sono Não REM (NREM) é um dos principais componentes do ciclo do sono, sendo dividido em três estágios que vão da transição da vigília ao sono profundo, desempenhando funções cruciais para a restauração física e cognitiva. Estes estágios, especialmente o sono de ondas lentas (N3), são fundamentais para a recuperação do corpo e do cérebro.
Estágio N1 (Transição para o Sono)
O estágio N1 marca a transição entre a vigília e o sono. Nesse período, observa-se uma queda na atividade cerebral, com a predominância das ondas teta, de baixa amplitude e frequência (4-8 Hz). É um estágio superficial, no qual o indivíduo pode ser facilmente despertado. Caracteriza-se por uma desaceleração dos movimentos oculares e pela diminuição gradual da percepção do ambiente ao redor. Representando cerca de 5% do tempo total de sono, o estágio N1 prepara o cérebro para os estágios mais profundos do sono. Durante essa fase, ocorre uma leve diminuição do tônus muscular, e podem surgir mioclonias (contrações musculares involuntárias), conhecidas como “sacudidelas do sono”, que são comuns nesse estágio inicial do sono (Silverthorn, 2017).
Estágio N2 (Sono Leve)
O estágio N2 é o mais longo dos estágios de sono, correspondendo a cerca de 45% a 55% do tempo total de sono. Durante este estágio, o sono torna-se mais consolidado, e o indivíduo se torna menos responsivo a estímulos externos. As ondas teta continuam predominantes, mas são observados dois fenômenos característicos no eletroencefalograma (EEG): os fusos do sono e os complexos K. Os fusos são rajadas curtas de atividade de alta frequência (12-16 Hz) que desempenham um papel importante na consolidação da memória motora e na proteção do cérebro contra despertares induzidos por estímulos externos (Machado, 2019). Já os complexos K, ondas de alta amplitude, são respostas do cérebro a estímulos sensoriais externos e têm a função de inibir essas respostas, preparando o cérebro para o sono profundo (Martin, 2016).
Fisiologicamente, no estágio N2 ocorre uma redução na frequência cardíaca, na pressão arterial e na temperatura corporal, o que contribui para a conservação de energia e prepara o corpo para o sono mais profundo.
Estágio N3 (Sono de Ondas Lentas ou Sono Profundo)
O estágio N3, também conhecido como sono de ondas lentas (SWS – Slow-Wave Sleep), é o mais profundo do sono NREM, representando cerca de 15% a 20% do ciclo total de sono, sendo mais predominante nas primeiras horas da noite. No EEG, predomina a atividade das ondas delta, de baixa frequência (0,5-4 Hz) e alta amplitude. Esse estágio é responsável pela recuperação física e mental (Machado, 2019).
Durante o sono N3, o corpo atinge seu nível mais baixo de atividade metabólica. A respiração e os batimentos cardíacos tornam-se extremamente lentos, e o tônus muscular diminui ainda mais. Esse estágio é crucial para a liberação de hormônios anabólicos, como o hormônio do crescimento (GH), que promove a regeneração tecidual, o crescimento muscular e a restauração celular. Além disso, o sistema glinfático, responsável pela remoção de resíduos metabólicos no cérebro, é especialmente ativo nesse estágio, desempenhando um papel importante na prevenção de doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer (Silverthorn, 2017).
No plano cognitivo, o sono de ondas lentas é essencial para a consolidação da memória declarativa (memórias factuais e episódicas), facilitando a transferência de informações do hipocampo para o córtex cerebral, onde essas memórias são armazenadas a longo prazo (Martin, 2016).
Outras Funções do Sono NREM
- Regulação Hormonal e Metabólica: O sono NREM, em especial o estágio N3, está fortemente associado à regulação de hormônios como a leptina, que regula o apetite, e a insulina, que controla os níveis de glicose no sangue. A privação do sono profundo pode levar a desregulações metabólicas e ao aumento do risco de desenvolver condições como obesidade e diabetes tipo 2 (Hammer, 2018).
- Consolidação da Memória e Aprendizado: Embora o sono REM desempenhe um papel fundamental na consolidação da memória emocional e procedimental, o sono N3 é essencial para a memória declarativa. A privação desse estágio do sono compromete a capacidade de aprender e reter novas informações (Martin, 2016).
- Fortalecimento do Sistema Imunológico: Durante o sono profundo, ocorre um aumento na produção de citocinas, moléculas envolvidas na regulação da resposta imunológica. O sono N3 é fundamental para o fortalecimento das defesas do organismo, ajudando-o a combater infecções e a se recuperar de doenças (Silverthorn, 2017).
Conclusão
Os estágios do sono NREM, especialmente o estágio N3, desempenham funções vitais para a restauração física, a consolidação da memória e a manutenção da saúde metabólica e imunológica. A compreensão detalhada desses processos é essencial para o desenvolvimento de abordagens clínicas que visem melhorar a qualidade do sono, impactando diretamente na saúde e no bem-estar geral.
O SONO REM
O sono REM (Rapid Eye Movement) é uma fase crucial do ciclo do sono, marcada por características neurofisiológicas únicas que o diferenciam do sono Não REM (NREM). Representando cerca de 20% a 25% do sono total de um adulto saudável, o sono REM alterna com os estágios NREM ao longo da noite, sendo que a duração dos períodos REM aumenta progressivamente à medida que a noite avança. Durante essa fase, ocorrem intensas atividades cerebrais e diversos processos cognitivos e emocionais que são fundamentais para o equilíbrio mental e físico.
Características Fisiológicas do Sono REM
- Movimentos Rápidos dos Olhos: Uma das características mais evidentes do sono REM é a presença de movimentos rápidos dos olhos, que ocorrem sob as pálpebras fechadas. Esses movimentos são acompanhados por uma atividade cerebral elevada, similar à observada durante a vigília, sugerindo uma intensa atividade cortical. Tal ativação reflete a criação e o processamento de sonhos, típicos desse estágio (Silverthorn, 2017).
- Paralisia Muscular (Atonia): Durante o sono REM, ocorre uma paralisia muscular quase completa, com exceção dos músculos responsáveis pela respiração e pelos movimentos oculares. Esta atonia é mediada por circuitos do tronco encefálico, principalmente nas áreas pontinas, e serve para proteger o indivíduo de “atuar” fisicamente durante os sonhos, prevenindo possíveis acidentes. Em distúrbios do sono REM, como o Distúrbio Comportamental do Sono REM, a ausência dessa paralisia pode resultar em comportamentos potencialmente perigosos durante o sono (Machado, 2019).
- Sonhos Vivos: O sono REM é notoriamente associado a sonhos vívidos e intensos, caracterizados por serem emocionalmente carregados e frequentemente lembrados ao despertar. Embora sonhos também possam ocorrer durante o NREM, os sonhos REM são mais complexos e detalhados (Martin, 2016).
- Atividade Cerebral: O eletroencefalograma (EEG) durante o sono REM exibe padrões de alta frequência e baixa amplitude, semelhantes às ondas beta observadas durante o estado de alerta, evidenciando a ativação generalizada do córtex cerebral. Isso indica que o cérebro está altamente ativo, processando informações e criando os conteúdos dos sonhos (Silverthorn, 2017).
- Ativação do Sistema Nervoso Autônomo: Durante o sono REM, há uma variabilidade aumentada nos padrões de respiração e na frequência cardíaca, além de flutuações na pressão arterial. Isso reflete a intermitente ativação do sistema nervoso simpático, algo que não ocorre de forma tão pronunciada nos estágios NREM (Martin, 2016).
Funções Cognitivas e Emocionais do Sono REM
O sono REM desempenha funções essenciais no processamento e consolidação de memórias, na regulação emocional e no equilíbrio do humor.
- Consolidação da Memória Procedimental: O sono REM é fundamental para a consolidação de memórias procedimentais, ou seja, aquelas relacionadas a habilidades motoras e aprendizado de tarefas complexas. Pesquisas indicam que a privação seletiva do sono REM prejudica a retenção dessas habilidades, especialmente as que requerem prática contínua, como tocar um instrumento musical ou realizar tarefas motoras detalhadas (Machado, 2019).
- Consolidação da Memória Emocional: A ativação de estruturas límbicas durante o sono REM, como a amígdala e o hipocampo, sugere que esse estágio é importante no processamento de memórias emocionais. Ao “reprocessar” experiências emocionais, o sono REM parece ajudar a atenuar o impacto emocional de eventos estressantes, favorecendo a resiliência emocional ao longo do tempo (Hammer, 2018).
- Regulação do Humor: A qualidade e quantidade do sono REM têm implicações diretas na regulação do humor. Alterações no sono REM, como as observadas em casos de depressão e ansiedade, podem exacerbar esses transtornos. Na depressão, por exemplo, há frequentemente um aumento na frequência dos episódios de sono REM, mas com uma redução na sua qualidade funcional, o que pode perpetuar os sintomas depressivos (Silverthorn, 2017).
- Processamento de Memórias Não Declarativas: Além das memórias emocionais, o sono REM também desempenha um papel na consolidação de memórias não declarativas, aquelas relacionadas a habilidades e conhecimentos que não requerem recordação consciente, como o reconhecimento de padrões e respostas condicionadas (Martin, 2016).
- Neuroplasticidade e Reorganização Sináptica: O sono REM está intimamente ligado à neuroplasticidade, que é a capacidade do cérebro de reorganizar suas conexões neuronais em resposta ao aprendizado e à experiência. Durante o sono REM, há um aumento da expressão de genes relacionados à plasticidade sináptica, o que sugere que esse estágio é crucial para a modificação das redes neurais e o fortalecimento das sinapses (Machado, 2019).
Circuitos Neurais Envolvidos no Sono REM
- Atividade Pontina: A ponte, uma estrutura do tronco encefálico, desempenha um papel central na indução e manutenção do sono REM. A formação reticular pontina envia sinais que promovem os movimentos rápidos dos olhos e a paralisia muscular, fundamentais para as características do sono REM (Martin, 2016).
- Neurotransmissores: O sono REM é regulado por um delicado equilíbrio entre diferentes neurotransmissores. A acetilcolina, liberada no tronco encefálico, promove a ativação cortical, facilitando os padrões de EEG típicos do sono REM. Em contrapartida, há uma redução nos níveis de serotonina e noradrenalina, o que contribui para a atonia muscular e para a supressão de respostas a estímulos externos (Hammer, 2018).
- Ativação Límbica: O sistema límbico, incluindo a amígdala e o hipocampo, é altamente ativo durante o sono REM, o que reflete o importante papel desse estágio no processamento emocional e na consolidação de memórias associadas a experiências intensas (Silverthorn, 2017).
Distúrbios Associados ao Sono REM
Os distúrbios relacionados ao sono REM podem ter efeitos adversos significativos sobre a saúde mental e física:
- Distúrbio Comportamental do Sono REM (RBD): Neste distúrbio, a paralisia muscular típica do sono REM está ausente, o que permite que os indivíduos atuem fisicamente durante os sonhos. Isso pode levar a comportamentos perigosos durante o sono, como agressões involuntárias (Machado, 2019).
- Depressão e Sono REM: Indivíduos com depressão frequentemente apresentam um aumento nos episódios de sono REM, mas com uma qualidade reduzida, o que pode agravar os sintomas depressivos (Silverthorn, 2017).
- Narcolepsia: Um dos sintomas da narcolepsia é a ocorrência intrusiva de sono REM durante a vigília, resultando em episódios de sonolência diurna excessiva e cataplexia (Hammer, 2018).
Conclusão
O sono REM é um componente essencial do ciclo do sono, com profundas implicações para o bem-estar emocional, cognitivo e físico. As funções relacionadas à consolidação da memória, à regulação emocional e à neuroplasticidade destacam a importância desse estágio para a saúde geral. Alterações no sono REM podem contribuir para o desenvolvimento de distúrbios neurológicos e psiquiátricos, reforçando a necessidade de preservá-lo para uma melhor qualidade de vida.
MECANISMOS NEUROBIOLÓGICOS DO SONO
O sono é regulado por uma complexa interação entre vários sistemas neuroquímicos e estruturas cerebrais. Duas teorias principais ajudam a explicar o controle do sono:
TEORIA DA HOMEOSTASE DO SONO (PROCESSO S)
A Teoria da Homeostase do Sono, também conhecida como Processo S, é uma das principais abordagens que explicam a regulação do sono em conjunto com o processo circadiano (Processo C). Segundo essa teoria, o sono é controlado por um mecanismo homeostático que aumenta progressivamente a pressão para dormir conforme o tempo de vigília se prolonga. A pressão para o sono atinge seu pico após longos períodos de atividade e diminui durante o sono, restaurando o equilíbrio. Dessa forma, o sono pode ser entendido como um mecanismo restaurador necessário para manter a homeostase cerebral e fisiológica (Silverthorn, 2017).
Mecanismo Subjacente: Acúmulo de Adenosina
O aumento da pressão para dormir está intimamente relacionado ao acúmulo de adenosina no cérebro. A adenosina é um subproduto do metabolismo energético celular, principalmente relacionado à degradação do trifosfato de adenosina (ATP), que fornece energia para diversas funções celulares. Durante a vigília, o cérebro consome grandes quantidades de ATP para manter processos como a sinalização sináptica, a atividade elétrica neuronal e a manutenção dos processos metabólicos. À medida que o ATP é metabolizado, a adenosina é liberada, e suas concentrações aumentam, especialmente em regiões como o prosencéfalo basal e o córtex cerebral (Hammer & McPhee, 2018).
Efeito da Adenosina no Sistema de Excitação
A adenosina exerce um efeito inibitório sobre o sistema nervoso central, atuando principalmente em receptores específicos, chamados receptores A1 e A2A. Os receptores A1, localizados em áreas como o prosencéfalo basal e o hipotálamo, inibem a liberação de neurotransmissores excitatórios como a acetilcolina e o glutamato. Isso resulta na redução da atividade neuronal, o que promove a sonolência conforme a vigília se prolonga (Martin, 2016).
Já os receptores A2A, encontrados em maior quantidade no estriado, também contribuem para a regulação da excitação. A ativação desses receptores facilita a transição para o sono ao reduzir o estado de alerta. À medida que os níveis de adenosina aumentam durante a vigília, a inibição dos sistemas excitatórios se torna mais pronunciada, aumentando a pressão para dormir (Silverthorn, 2017).
Adenosina e a Pressão do Sono
O acúmulo de adenosina é percebido pelo cérebro como um sinal de fadiga, o que aumenta a necessidade de sono. Durante o sono, principalmente no sono de ondas lentas (N3), os níveis de adenosina no cérebro diminuem significativamente, permitindo que os sistemas de excitação sejam restaurados e reequilibrados. Esse processo é crucial para que, ao acordar, o indivíduo esteja em estado de alerta e com energia suficiente para as atividades diárias (Hammer & McPhee, 2018).
Evidências Experimentais
Um dos principais suportes experimentais para o papel da adenosina na regulação do sono vem do uso de cafeína. A cafeína atua como um antagonista dos receptores de adenosina, especialmente os receptores A1, bloqueando os efeitos sedativos dessa substância e promovendo a vigília. Isso explica por que o consumo de cafeína pode reduzir a sonolência e prolongar o estado de alerta (Machado, 2019). Além disso, estudos de privação de sono mostraram que os níveis de adenosina aumentam significativamente durante a vigília prolongada, correlacionando-se diretamente com o aumento da pressão para dormir (Silverthorn, 2017).
Papel do Sono na Eliminação da Adenosina
O sono, especialmente o sono profundo (N3), desempenha um papel essencial na eliminação da adenosina acumulada. Durante o sono, o cérebro entra em um estado de repouso metabólico, permitindo a restauração dos níveis de ATP e a eliminação dos subprodutos do metabolismo energético. Isso reduz a pressão para dormir e restaura a capacidade de alerta ao despertar (Martin, 2016).
Interação com o Processo Circadiano (Processo C)
A Teoria da Homeostase do Sono (Processo S) interage com o Processo Circadiano (Processo C), que regula o sono com base em um ciclo de 24 horas, influenciado pelo ciclo luz-escuridão. Enquanto o Processo S regula a pressão do sono com base no tempo de vigília, o Processo C sincroniza o ciclo de sono-vigília com os ritmos circadianos, otimizando a alternância entre o sono NREM e REM. A interação entre esses dois processos é essencial para a manutenção de um ciclo de sono saudável e equilibrado (Hammer & McPhee, 2018).
Conclusão
A Teoria da Homeostase do Sono (Processo S) oferece uma explicação sólida para a regulação do sono com base no acúmulo de adenosina durante a vigília. O aumento da pressão do sono está diretamente relacionado ao acúmulo desse subproduto metabólico, que atua inibindo os sistemas excitatórios e promovendo o início do sono. A interação entre os processos homeostático e circadiano é fundamental para garantir um ciclo de sono-vigília equilibrado, essencial para a saúde física e mental.
TEORIA CIRCADIANA (PROCESSO C)
A Teoria Circadiana ou Processo C explica a regulação do sono e da vigília com base em um ciclo de cerca de 24 horas, conhecido como ritmo circadiano. Este ciclo biológico é coordenado por um conjunto de estruturas cerebrais e hormônios, sendo essencial para alinhar as funções corporais, como o sono, à variação da luz e da escuridão no ambiente. A principal função do Processo C é sincronizar os ciclos de sono e vigília com o ambiente externo, otimizando o funcionamento fisiológico e cognitivo ao longo do dia.
Núcleo Supraquiasmático (NSQ): O Relógio Biológico
No centro dessa teoria está o núcleo supraquiasmático (NSQ), uma pequena estrutura localizada no hipotálamo. O NSQ é considerado o “relógio biológico” do corpo, responsável por regular os ritmos circadianos. Ele sincroniza os ciclos biológicos com o ciclo natural de 24 horas de luz e escuridão.
Regulação pelo Ciclo Luz-Escuridão
O NSQ recebe informações diretas sobre a quantidade de luz do ambiente através de células ganglionares da retina que possuem o fotopigmento melanopsina. Essas células transmitem sinais ao NSQ pelo trato retino-hipotalâmico, informando ao cérebro se é dia ou noite. Com base nessas informações, o NSQ ajusta os ritmos biológicos, incluindo a secreção de hormônios e a regulação do sono e da vigília.
Melatonina: O Hormônio do Sono
Um dos principais mecanismos de controle do ritmo circadiano é a liberação de melatonina pela glândula pineal. A melatonina é um hormônio que sinaliza ao corpo que é hora de dormir e sua secreção está diretamente regulada pelo NSQ.
- Durante o Dia: Na presença de luz, o NSQ inibe a produção de melatonina pela glândula pineal, promovendo o estado de alerta e a vigília. A luz, especialmente a luz azul, tem um efeito supressor sobre a produção de melatonina.
- À Noite: Quando a luz diminui, o NSQ sinaliza à glândula pineal para iniciar a liberação de melatonina no sangue. Esse aumento nos níveis de melatonina gera uma série de mudanças fisiológicas no corpo, como a diminuição da temperatura corporal, a redução da frequência cardíaca e a promoção de sensações de sonolência.
A melatonina tem um papel crucial na transição para o sono, sincronizando os processos internos do corpo com a hora do dia e estabelecendo o momento adequado para o início do sono. Isso torna a regulação do ritmo circadiano fundamental para o equilíbrio dos ciclos de sono e vigília.
Interação com Outros Ritmos Biológicos
Além da regulação do sono, o ritmo circadiano controlado pelo NSQ influencia uma ampla gama de processos fisiológicos, incluindo:
- Temperatura Corporal: A temperatura do corpo segue um ciclo circadiano, atingindo seu ponto mais baixo durante a madrugada, quando os níveis de melatonina estão elevados, e aumentando pela manhã.
- Secreção de Cortisol: O cortisol, o hormônio do estresse, também é regulado pelo ritmo circadiano. Seus níveis são mais baixos à noite e começam a aumentar nas primeiras horas da manhã, atingindo seu pico logo antes de acordarmos, ajudando a preparar o corpo para a vigília.
- Apetite e Digestão: O apetite e os processos digestivos seguem padrões circadianos, e a alimentação em horários inadequados pode interferir nesse ciclo, influenciando o metabolismo.
- Funções Cognitivas e Vigilância: O nível de alerta e o desempenho cognitivo variam de acordo com o ciclo circadiano, sendo mais elevados durante o dia e diminuindo à noite. A interação entre o ritmo circadiano e a homeostase do sono (Processo S) determina a sensação de fadiga e a necessidade de dormir.
Ritmo Circadiano e Distúrbios do Sono
A desregulação do ritmo circadiano pode levar a uma série de distúrbios do sono, como:
- Jet Lag: Ocorre quando há uma mudança rápida de fusos horários, desajustando o relógio biológico em relação ao ciclo luz-escuridão local. Isso resulta em uma desorganização temporária do ciclo sono-vigília, causando fadiga, insônia e dificuldades cognitivas.
- Transtorno do Ritmo Sono-Vigília Desfasado: Esse transtorno afeta principalmente pessoas que têm horários irregulares de sono, como trabalhadores em turnos. Ele ocorre quando o ciclo sono-vigília está desalinhado com o ciclo luz-escuridão, causando sonolência diurna e insônia noturna.
- Insônia e Distúrbios do Humor: Desregulações no ciclo circadiano, como a exposição à luz em horários inadequados ou a falta de um ciclo regular de sono, podem contribuir para a insônia e aumentar o risco de transtornos do humor, como depressão e ansiedade.
Importância da Sincronização Circadiana
Para manter um ritmo circadiano saudável, a exposição à luz natural durante o dia e a redução da exposição à luz, especialmente à luz azul, durante a noite são fundamentais. Estudos mostram que a sincronização dos ritmos circadianos com o ciclo de luz natural melhora a qualidade do sono, a saúde física e o bem-estar mental.
A Teoria Circadiana (Processo C) descreve como o ciclo sono-vigília é regulado pelo núcleo supraquiasmático e pela melatonina, sincronizando as funções corporais com o ciclo luz-escuridão. Essa teoria é fundamental para compreender como o corpo mantém um equilíbrio interno e como a desregulação desse processo pode impactar a saúde e o bem-estar.
Esses dois processos (homeostático e circadiano) interagem para regular o sono, determinando o início e a duração do ciclo de sono-vigília. Essas estruturas cerebrais não atuam de forma isolada, mas sim em coordenação para regular os ciclos de sono e vigília e promover as funções restauradoras do sono. O hipotálamo sincroniza o ciclo circadiano com o ambiente, enquanto o tálamo e o tronco encefálico controlam a transição entre os estágios do sono e bloqueiam estímulos externos para garantir a continuidade do sono. O córtex cerebral e o sistema límbico processam informações e memórias, reorganizando e consolidando eventos recentes e experiências emocionais, especialmente durante o sono de ondas lentas e o sono REM.
ÁREAS CEREBRAIS ENVOLVIDAS NO SONO
A regulação do sono envolve uma série de interações complexas entre várias regiões cerebrais e sistemas neuroquímicos. Abaixo, explico detalhadamente as funções de cada uma das estruturas cerebrais que você mencionou, enfatizando seu papel específico durante os diferentes estágios do sono.
1. Hipotálamo: Relógio Biológico e Ritmos Circadianos
O hipotálamo é fundamental para a regulação do ciclo sono-vigília, principalmente através do núcleo supraquiasmático (NSQ). O NSQ é considerado o “relógio biológico” do corpo, coordenando os ritmos circadianos com o ciclo de luz e escuridão no ambiente. Ele recebe informações da retina sobre os níveis de luminosidade e usa essa entrada para sincronizar os processos fisiológicos, como o sono, a temperatura corporal e a liberação de hormônios, com as horas do dia.
- Função do NSQ: Durante o dia, o NSQ inibe a produção de melatonina pela glândula pineal, mantendo o corpo em um estado de vigília. À noite, com a redução da luz, o NSQ sinaliza para que a glândula pineal inicie a produção de melatonina, promovendo a sonolência e preparando o corpo para o sono. Assim, o NSQ atua como um marcapasso que sincroniza os ritmos biológicos com o ciclo luz-escuridão.
2. Tálamo: Filtro Sensorial Durante o Sono NREM
O tálamo desempenha um papel crucial na regulação das informações sensoriais durante o sono, particularmente durante o sono NREM, especialmente nos estágios mais profundos (como o sono de ondas lentas ou N3). Durante a vigília, o tálamo age como um “portão” que transmite informações sensoriais do ambiente externo ao córtex cerebral, permitindo que o cérebro processe essas informações.
- Função no Sono: Durante o sono, e em particular no sono NREM profundo, a atividade do tálamo é reduzida. Essa diminuição na atividade talâmica bloqueia a transmissão da maioria das informações sensoriais para o córtex, permitindo que o cérebro descanse e se recupere de maneira mais eficaz. Isso protege o sono de ser interrompido por estímulos sensoriais externos, ajudando a manter um estado de descanso profundo.
3. Córtex Cerebral: Processamento de Informações e Consolidação da Memória
O córtex cerebral está intimamente envolvido no processamento de informações e na consolidação da memória durante o sono, especialmente no sono de ondas lentas (N3). Durante esse estágio, o cérebro processa memórias adquiridas durante o dia e facilita a transferência dessas memórias do hipocampo para o córtex, onde são armazenadas a longo prazo.
- Função no Sono de Ondas Lentas: O sono de ondas lentas é essencial para a consolidação da memória declarativa, que inclui fatos e eventos. O córtex também desempenha um papel importante na reorganização das memórias, fortalecendo as conexões sinápticas associadas a novas informações, o que contribui para o aprendizado e o processamento cognitivo.
4. Tronco Encefálico: Transição entre Vigília e Sono, e Controle do Sono REM
O tronco encefálico, que inclui a ponte, o mesencéfalo e o bulbo, é fundamental para regular a transição entre os estágios do sono NREM, o sono REM e a vigília. Ele contém vários núcleos que são responsáveis pela ativação e desativação de redes neuronais específicas durante o sono.
- Função no Sono REM: No sono REM, o tronco encefálico desempenha um papel crítico na inibição motora. Neurônios localizados na ponte e no mesencéfalo desativam a maior parte da atividade muscular esquelética, resultando em atonia muscular (paralisia temporária), o que impede que o corpo realize movimentos associados aos sonhos. Essa paralisia é um mecanismo protetor que previne que os indivíduos “atuem” seus sonhos, evitando comportamentos perigosos durante o sono.
5. Sistema Límbico: Consolidação de Memórias Emocionais e Regulação do Humor
O sistema límbico, que inclui estruturas como a amígdala e o hipocampo, é altamente ativo durante o sono REM. O sistema límbico é responsável pela regulação das emoções e pelo processamento de memórias emocionais, e seu envolvimento no sono REM sugere que esse estágio desempenha um papel importante na consolidação de memórias emocionais.
- Função no Sono REM: Durante o sono REM, o hipocampo e a amígdala ajudam a processar e consolidar experiências emocionais vividas durante o dia. Esse processamento pode ser fundamental para regular o humor e a resiliência emocional. A amígdala, em particular, está envolvida na avaliação e resposta a estímulos emocionais, e sua alta atividade durante o sono REM sugere que esse estágio é importante para ajustar as respostas emocionais a eventos estressantes.
NEUROQUÍMICA DO SONO
A neuroquímica do sono envolve uma interação complexa de neurotransmissores e neuromoduladores que regulam tanto a iniciação quanto a manutenção dos diferentes estágios do sono e da vigília. Esses neurotransmissores não apenas iniciam o sono ou a vigília, mas também controlam a alternância entre os estágios do sono, como o sono NREM e REM. Abaixo, uma descrição detalhada das principais substâncias neuroquímicas envolvidas no ciclo sono-vigília:
1. Adenosina
A adenosina é um dos principais reguladores da homeostase do sono (Processo S). Durante a vigília, o cérebro consome ATP (adenosina trifosfato) para fornecer energia às atividades celulares. À medida que a energia é usada, a adenosina, um subproduto do ATP, começa a se acumular no cérebro. Esse acúmulo exerce um efeito inibitório sobre os neurônios excitatórios, especialmente nos centros de vigília, como o prosencéfalo basal.
- Função: A adenosina promove a sonolência, reduzindo a atividade nos sistemas de excitação e aumentando a pressão do sono. Quanto mais tempo um indivíduo permanece acordado, maiores são os níveis de adenosina no cérebro, o que aumenta a necessidade de sono.
- Regulação: Durante o sono, os níveis de adenosina diminuem, o que reduz a pressão homeostática para dormir. O bloqueio dos receptores de adenosina por substâncias como a cafeína resulta na promoção da vigília, explicando o efeito estimulante do café e outros produtos com cafeína.
2. Melatonina
A melatonina é um hormônio produzido pela glândula pineal, cuja produção aumenta à noite em resposta à escuridão. Sua liberação é controlada pelo núcleo supraquiasmático (NSQ), localizado no hipotálamo, que regula o ciclo circadiano.
- Função: A melatonina sinaliza ao corpo que é hora de dormir, promovendo a sonolência e preparando o corpo para o sono. Sua produção começa a aumentar ao anoitecer, atingindo o pico no meio da noite e diminuindo nas primeiras horas da manhã. Ela também ajuda a regular a temperatura corporal e a pressão arterial, diminuindo esses parâmetros para facilitar o sono.
- Uso Terapêutico: Suplementos de melatonina são frequentemente usados para tratar distúrbios do sono relacionados ao ritmo circadiano, como a insônia e o jet lag, ajudando a ajustar o ciclo sono-vigília.
3. GABA (Ácido Gama-Aminobutírico)
O GABA é o principal neurotransmissor inibitório do cérebro, desempenhando um papel central no início do sono. O GABA é liberado por neurônios localizados em áreas do hipotálamo e do tálamo, como o núcleo pré-óptico ventrolateral (VLPO), que inibe os centros de excitação no tronco encefálico e no hipotálamo.
- Função: O GABA atua reduzindo a atividade dos neurônios excitatórios, facilitando a transição da vigília para o sono, particularmente o sono NREM. Ele inibe os sistemas que promovem o estado de alerta, como as regiões que liberam acetilcolina, noradrenalina e serotonina, permitindo que o cérebro entre em um estado de repouso.
- Distúrbios do Sono: Muitas medicações usadas para tratar insônia, como os benzodiazepínicos e outros sedativos, funcionam aumentando a ação do GABA, promovendo o sono ao inibir ainda mais os sistemas de excitação.
4. Orexina (Hipocretina)
A orexina, também conhecida como hipocretina, é um neuropeptídeo produzido no hipotálamo e é crucial para a manutenção da vigília. A orexina estabiliza o estado de alerta e impede a transição abrupta para o sono, particularmente o sono REM.
- Função: A orexina mantém a vigília, ativando áreas do cérebro responsáveis pela excitação e pela manutenção do estado desperto. Ela regula a transição suave entre os estados de vigília e sono e também coordena as atividades metabólicas e o apetite.
- Deficiência e Distúrbios: A deficiência de orexina está associada à narcolepsia, um distúrbio caracterizado pela incapacidade de manter a vigília, resultando em episódios repentinos de sono REM durante o dia, frequentemente acompanhados de cataplexia (perda súbita do tônus muscular). Isso ocorre porque, na ausência de orexina, o cérebro perde a capacidade de estabilizar o estado de vigília, levando à entrada prematura no sono REM.
5. Acetilcolina, Noradrenalina e Serotonina
Esses três neurotransmissores desempenham papéis importantes na regulação do ciclo sono-vigília e na transição entre os diferentes estágios do sono, particularmente entre o sono NREM e REM.
- Acetilcolina: A acetilcolina é altamente ativa durante o sono REM, onde facilita a ativação cortical e o padrão de ondas rápidas, semelhante ao estado de vigília, observado no eletroencefalograma (EEG). No entanto, seus níveis são baixos durante o sono NREM, o que contribui para o estado de repouso. A acetilcolina é fundamental para os processos de sonhos e neuroplasticidade durante o sono REM.
- Noradrenalina (Norepinefrina): A noradrenalina está associada à vigília e ao estado de alerta, sendo liberada por neurônios no locus coeruleus. Durante o sono NREM, os níveis de noradrenalina diminuem significativamente e praticamente se tornam ausentes no sono REM. Isso facilita a transição para o sono REM, onde o sistema de excitação é desativado, permitindo a paralisia muscular.
- Serotonina: A serotonina desempenha um papel bifásico no sono. Durante o sono NREM, seus níveis diminuem, facilitando a entrada no sono profundo. No entanto, a serotonina é crucial para a transição da vigília para o sono, e seus níveis aumentam durante o início do sono. Ela também ajuda a modular o humor e a estabilidade emocional, tanto durante o sono quanto na vigília.
Integração e Regulação do Ciclo Sono-Vigília
A interação entre esses neurotransmissores e neuromoduladores garante que o ciclo sono-vigília seja bem regulado e sincronizado com os ritmos circadianos e homeostáticos do corpo. Durante o dia, neurotransmissores como a orexina, a noradrenalina e a acetilcolina mantêm a vigília, enquanto a adenosina se acumula progressivamente, aumentando a pressão homeostática para o sono. À noite, a produção de melatonina sinaliza o início do sono, enquanto o GABA inibe os sistemas excitatórios, promovendo a entrada no sono NREM. Por fim, a acetilcolina e a serotonina facilitam a transição para o sono REM, onde o cérebro processa memórias e emoções.
A neuroquímica do sono depende de uma interação bem coordenada entre vários neurotransmissores e neuromoduladores, cada um desempenhando um papel específico na iniciação, manutenção e transição entre os diferentes estágios do sono. Essa complexa rede de sinais químicos garante que o sono seja restaurador, permitindo a recuperação física e mental e a consolidação de memórias. Distúrbios na produção ou função desses neurotransmissores podem levar a uma ampla gama de distúrbios do sono, como insônia, narcolepsia e distúrbios do ritmo circadiano.
FUNÇÕES DO SONO
O sono desempenha funções essenciais para a manutenção da saúde física, mental e cognitiva. A pesquisa em neurociência identificou diversos papéis críticos do sono, que vão desde a consolidação da memória até a desintoxicação cerebral. A seguir, explano cada uma dessas funções em mais detalhes:
1. Consolidação da Memória
Uma das funções mais estudadas do sono é sua relação com a consolidação da memória. O sono facilita a estabilização e o armazenamento de memórias recém-adquiridas, transferindo-as para redes neurais de longo prazo.
- Sono NREM: O sono de ondas lentas (NREM, estágio N3) é particularmente importante para a consolidação de memórias declarativas, que incluem memórias factuais (como nomes, datas e eventos). Durante o sono NREM, o cérebro reforça as conexões sinápticas, especialmente no hipocampo e no córtex, que são áreas críticas para a formação e a consolidação dessas memórias. Isso facilita a retenção de informações adquiridas ao longo do dia.
- Sono REM: O sono REM tem uma função mais significativa na consolidação de memórias procedimentais, que envolvem habilidades motoras e aprendizados baseados em hábitos, como tocar um instrumento musical ou aprender uma nova habilidade motora. Além disso, o sono REM está envolvido no processamento de memórias emocionais, ajudando a “limpar” o impacto emocional excessivo de experiências passadas.
2. Restauro Físico e Metabólico
O sono é um período crucial para a reparação tecidual e o crescimento celular, especialmente durante o sono NREM profundo (N3). Nesse estágio, o corpo entra em um estado de recuperação física:
- Hormônios: Durante o sono profundo, há uma liberação de hormônios anabólicos, como o hormônio do crescimento (GH), que promove a reparação dos tecidos, o crescimento muscular e a regeneração celular. Isso é essencial para a recuperação de lesões e para o crescimento, especialmente em crianças e adolescentes.
- Regulação Metabólica: O sono também desempenha um papel fundamental no equilíbrio metabólico. A privação de sono pode desregular hormônios como a leptina e a grelina, que regulam o apetite, levando a desequilíbrios que contribuem para o ganho de peso e até para o desenvolvimento de condições como a obesidade e o diabetes tipo 2.
- Homeostase Hormonal: Durante o sono, o corpo restaura o equilíbrio hormonal. O sono profundo ajuda a manter níveis adequados de hormônios essenciais, como o cortisol (envolvido na resposta ao estresse) e a insulina, crucial para o metabolismo da glicose.
3. Regulação Emocional
O sono REM é particularmente importante para a regulação emocional. Esse estágio do sono é caracterizado por alta atividade cerebral, similar à vigília, e está intimamente ligado ao processamento de experiências emocionais.
- Reprocessamento Emocional: Durante o sono REM, o cérebro revisita e reprocessa eventos emocionais vividos durante o dia, permitindo que o indivíduo “renegocie” as emoções associadas a essas experiências. Esse processo ajuda a atenuar o impacto emocional excessivo de eventos estressantes ou traumáticos, permitindo uma melhor adaptação emocional ao longo do tempo.
- Resiliência Emocional: A privação de sono, especialmente do sono REM, pode prejudicar a capacidade de regular as emoções, resultando em maior reatividade emocional, irritabilidade e aumento do risco de desenvolver transtornos de humor, como depressão e ansiedade.
4. Desintoxicação Cerebral
O sono também desempenha um papel vital na desintoxicação cerebral. Durante o sono, o cérebro ativa o sistema glinfático, uma rede especializada de drenagem que é mais ativa enquanto dormimos.
- Sistema Glinfático: O sistema glinfático facilita a remoção de resíduos metabólicos e toxinas que se acumulam no cérebro durante o período de vigília. Entre essas substâncias estão proteínas associadas a doenças neurodegenerativas, como a beta-amiloide e a tau, que se acumulam em excesso no cérebro de pacientes com doença de Alzheimer.
- Função de Limpeza: Durante o sono, o espaço intersticial no cérebro aumenta, permitindo que o líquido cerebrospinal circule com mais eficiência e remova resíduos. Essa função de “limpeza” ajuda a prevenir o acúmulo de proteínas tóxicas e reduz o risco de desenvolvimento de doenças neurodegenerativas ao longo da vida.
O sono não é um estado passivo, mas sim um processo altamente ativo, crucial para diversas funções biológicas e cognitivas. Desde a consolidação de memórias e a recuperação física até a regulação emocional e a desintoxicação cerebral, o sono é fundamental para a saúde mental e física. A privação de sono, seja em termos de quantidade ou qualidade, pode ter efeitos profundos na memória, no equilíbrio metabólico, no humor e até mesmo na saúde cerebral a longo prazo.
DISTÚRBIOS DO SONO
Os distúrbios do sono representam uma ampla gama de condições que afetam a qualidade, a quantidade ou a regulação do sono. Eles podem surgir de disfunções nos mecanismos neurobiológicos que controlam o ciclo sono-vigília, envolvendo neurotransmissores, hormônios e circuitos cerebrais específicos. A seguir, explano alguns dos distúrbios do sono mais comuns, suas características e as bases neurobiológicas associadas:
1. Insônia
A insônia é um dos distúrbios do sono mais prevalentes, caracterizada pela dificuldade persistente de iniciar ou manter o sono, apesar de haver oportunidades adequadas para dormir. Pessoas com insônia geralmente apresentam sono de má qualidade, levando a um impacto negativo na função diurna, como fadiga, dificuldade de concentração e irritabilidade.
- Causas Neurobiológicas: A insônia pode estar associada a desequilíbrios nos sistemas de excitação e inibição neuronal. Em condições normais, o sono é iniciado pelo aumento da atividade de neurotransmissores inibitórios, como o GABA, e pela diminuição da atividade dos neurotransmissores excitatórios, como a acetilcolina, noradrenalina e orexina. Na insônia, pode haver uma hiperatividade do sistema de excitação, dificultando a transição para o sono. Fatores como o estresse crônico, transtornos de ansiedade e depressão também podem contribuir para a insônia, afetando a função do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA) e aumentando os níveis de cortisol, o que prejudica a indução do sono.
- Tipos de Insônia:
- Insônia de Início do Sono: Dificuldade em adormecer, frequentemente associada a uma hiperatividade cognitiva ou emocional.
- Insônia de Manutenção do Sono: Dificuldade em permanecer dormindo, com frequentes despertares noturnos.
- Insônia Terminal: Despertar muito cedo pela manhã, sem conseguir voltar a dormir.
2. Apneia Obstrutiva do Sono
A apneia obstrutiva do sono (AOS) é um distúrbio caracterizado por interrupções temporárias da respiração durante o sono, devido ao colapso ou à obstrução das vias aéreas superiores. Essas pausas na respiração podem durar de 10 a 30 segundos e ocorrem repetidamente durante a noite, resultando em uma fragmentação significativa do sono e na diminuição do tempo gasto nos estágios mais profundos do sono NREM e no sono REM.
- Mecanismo: A AOS é causada principalmente por obstrução das vias aéreas superiores, o que leva à diminuição ou cessação do fluxo de ar, apesar dos esforços respiratórios contínuos. Quando os níveis de oxigênio no sangue caem durante esses episódios de apneia, o cérebro detecta essa hipoxemia e desperta o indivíduo brevemente para restaurar a respiração, frequentemente sem que a pessoa perceba. Esses microdespertares constantes fragmentam o sono, resultando em sonolência diurna excessiva e outros efeitos colaterais, como hipertensão e aumento do risco de doenças cardiovasculares.
- Fatores de Risco: Os principais fatores de risco incluem obesidade, anormalidades nas vias aéreas, idade avançada e uso de álcool ou sedativos antes de dormir.
- Tratamento: O tratamento mais comum para a apneia obstrutiva do sono é o uso de dispositivos de pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP), que mantém as vias aéreas abertas durante o sono. Perda de peso e cirurgias para corrigir anormalidades nas vias aéreas também podem ser recomendadas.
3. Narcolepsia
A narcolepsia é um distúrbio neurológico caracterizado por episódios súbitos e incontroláveis de sono durante a vigília. Os episódios de sono podem ocorrer em qualquer momento do dia, frequentemente em situações inadequadas, como durante o trabalho ou enquanto se dirige. A narcolepsia também está associada a cataplexia, uma perda repentina do tônus muscular, desencadeada por emoções fortes, como riso ou surpresa.
- Causas Neurobiológicas: A narcolepsia é frequentemente associada a uma deficiência de orexina (também conhecida como hipocretina), um neuropeptídeo produzido no hipotálamo que desempenha um papel crucial na manutenção da vigília e na regulação do ciclo sono-vigília. Em indivíduos com narcolepsia, a perda dos neurônios produtores de orexina causa uma instabilidade nos mecanismos de controle do sono, resultando em episódios abruptos de sono REM durante o dia. A transição rápida para o sono REM explica os episódios de cataplexia, uma vez que o sono REM é caracterizado por atonia muscular.
- Sintomas Associados:
- Sonolência Diurna Excessiva: O sintoma mais comum, caracterizado por uma necessidade incontrolável de dormir durante o dia.
- Cataplexia: Perda súbita do tônus muscular, desencadeada por emoções fortes.
- Paralisia do Sono: Incapacidade temporária de se mover ou falar ao adormecer ou ao acordar.
- Alucinações Hipnagógicas: Alucinações vívidas que ocorrem ao adormecer.
- Tratamento: O tratamento da narcolepsia geralmente inclui o uso de estimulantes para controlar a sonolência diurna e medicamentos como antidepressivos para controlar a cataplexia.
4. Parassonias
As parassonias são distúrbios caracterizados por comportamentos anormais durante o sono, que ocorrem geralmente no sono NREM. Elas incluem fenômenos como o sonambulismo e os terrores noturnos, que são mais comuns em crianças, mas também podem ocorrer em adultos.
- Sonambulismo: O sonambulismo ocorre quando uma pessoa realiza atividades motoras durante o sono, como caminhar ou falar, sem estar plenamente consciente. Isso acontece principalmente durante o sono NREM, em estágios mais profundos, e o indivíduo geralmente não se lembra das atividades ao acordar. O sonambulismo pode ser desencadeado por privação de sono, estresse ou consumo de álcool.
- Terrores Noturnos: Os terrores noturnos são episódios de medo intenso, acompanhados por gritos, agitação e aumento da frequência cardíaca, que ocorrem durante o sono profundo (NREM). A pessoa pode parecer acordada, mas está em um estado de confusão e raramente se lembra do episódio ao despertar. Diferentemente dos pesadelos, que ocorrem durante o sono REM, os terrores noturnos são mais frequentes no início da noite e envolvem uma ativação anormal do sistema autonômico.
- Tratamento: O tratamento das parassonias pode incluir mudanças nos hábitos de sono, técnicas de relaxamento, e, em casos graves, medicamentos sedativos para suprimir os episódios.
Os distúrbios do sono refletem disfunções em mecanismos regulatórios complexos que envolvem neurotransmissores, neuromoduladores e circuitos cerebrais responsáveis pelo ciclo sono-vigília. A insônia, a apneia do sono, a narcolepsia e as parassonias são exemplos de como essas disfunções podem afetar a qualidade do sono, levando a consequências significativas na saúde física e mental. O diagnóstico e o tratamento adequados são essenciais para restaurar a normalidade do ciclo sono-vigília e melhorar a qualidade de vida dos indivíduos afetados.
CONCLUSÃO
A neurociência do sono avançou significativamente na compreensão dos mecanismos regulatórios que controlam o ciclo sono-vigília, destacando a importância de diversos sistemas neuroquímicos e regiões cerebrais para a sua manutenção. O sono, dividido em fases de sono Não REM (NREM) e sono REM, desempenha um papel crucial em funções essenciais como a consolidação da memória, a restauração física e metabólica, a regulação emocional e a desintoxicação cerebral. O equilíbrio entre esses processos é mantido por uma complexa interação entre neurotransmissores, como a adenosina, o GABA, a melatonina e a orexina, e áreas cerebrais, como o hipotálamo, o tálamo, o tronco encefálico e o sistema límbico.
Os distúrbios do sono, como a insônia, a apneia do sono, a narcolepsia e as parassonias, refletem disfunções nesses sistemas e podem ter sérias implicações para a saúde física e mental. A Teoria da Homeostase do Sono e a Teoria Circadiana ajudam a explicar como o corpo regula o sono, garantindo um equilíbrio entre a pressão para dormir e o ritmo circadiano.
O sono é um estado ativo e dinâmico, fundamental para a manutenção da homeostase cerebral e para o funcionamento adequado de inúmeros processos fisiológicos e cognitivos. A pesquisa contínua no campo da neurociência do sono é crucial para o desenvolvimento de intervenções que melhorem a qualidade do sono e, consequentemente, a saúde global da população. Desde a descoberta do sono como um processo biológico essencial, tem-se observado um avanço significativo na compreensão dos mecanismos neurobiológicos que o regulam, bem como das funções vitais que desempenha no organismo humano.
Assim como a tecnologia evoluiu e transformou diversos aspectos da vida cotidiana, a ciência do sono também progrediu, revelando a complexidade e a importância desse estado para a saúde física, mental e cognitiva. É possível afirmar que a necessidade de aprofundar o estudo sobre o sono e seus distúrbios torna-se cada vez mais imprescindível, dada a sua influência direta no bem-estar e na qualidade de vida das pessoas.
Atualmente, com o estilo de vida acelerado e o aumento de fatores que contribuem para a privação do sono, o trabalho dos profissionais especializados em neurociência do sono torna-se mais desafiador e crucial. Observa-se que os distúrbios do sono têm se tornado mais prevalentes, impactando significativamente a saúde da população e exigindo abordagens terapêuticas eficazes.
No entanto, apesar dos desafios, a contínua pesquisa e dedicação de cientistas e profissionais da saúde têm proporcionado avanços no diagnóstico e tratamento dos distúrbios do sono. A disseminação do conhecimento sobre a importância do sono é fundamental para que indivíduos e sociedades adotem práticas que favoreçam hábitos saudáveis de sono.
Conclui-se, portanto, que compreender profundamente a neurociência do sono é de extrema importância. É necessário que instituições acadêmicas, profissionais da saúde e governos reconheçam o valor desse campo de estudo e invistam em pesquisas e políticas que promovam a saúde do sono, visando ao bem-estar integral da população.
REFERÊNCIAS
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